Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” 30 outubro 2024
Regresso, hoje, aos testemunhos pessoais sobre as primeiras epidemias de cólera que vivi já como médico.
As descrições das ações que desenvolvi, entre 1976-1977, sob a orientação de António Lobato Faria (1933-2001), engenheiro sanitário da Direção-Geral da Saúde, são, agora, praticamente inacreditáveis. Ao olhar para trás, há certas iniciativas que parecem episódios quase medievais.
Ver-se-á que Portugal rural, na época, era outro.
A seguir, descrevo a cena (verídica, incluindo os nomes dos protagonistas) passada em dia solarengo de Outono, de 1976, às 9 horas, no Centro de Saúde do concelho de Cuba, no Baixo Alentejo.
Amílcar, recém-regressado de Angola (com o estatuto de Retornado), apresenta-se ao Delegado de Saúde para iniciar funções de agente sanitário, a nível municipal. Nessa manhã, ele acabara de fazer a estrada Beja-Cuba a guiar uma motoreta de 50 CC de marca Zundapp que no guarda lama traseiro ostentava um dístico oval, sinalizando ser propriedade do Estado.
Amílcar tinha recebido instruções e uma rápida formação facultada pelo Senhor Marques que, então, desempenhava funções de coordenador distrital dos agentes sanitários de Beja. Era um homem que aparentava ter menos de 40 anos de idade, magro, muito delicado, afável e humilde.
Recomendei que começasse por se instalar e que, para tal, pedisse apoio à Dona Augusta (secretária administrativa), para negociar um bom preço mensal de um quarto na Pensão do Jacinto.
Pouco tempo depois, voltou ao meu Gabinete para, assim, propor o seu trabalho:
– Senhor Doutor, tenho ordens para começar pela desinfeção dos poços que abastecem as localidades mais afastadas, porque estamos ameaçados pelo risco de cólera e não podemos perder tempo, exclamou em tom cordato.
Respondi-lhe, com voz igualmente amável:
– Meu caro Senhor Amílcar, concordo inteiramente, mas repare que aqui quem dá ordens somos nós na Cuba e não o pessoal de Beja!
– Muito bem, Senhor Doutor.
– Olhe, comecemos por ir à sala onde estão afixados na parede os mapas do concelho à escala militar.
Já junto às cartas geográficas, Amílcar concluiu que a pequena aldeia de Albergaria dos Fusos seria visitada no dia seguinte, na perspetiva de pôr um pote difusor de cloro mergulhado no poço.
Assim sucedeu.
Todavia, uma vez colocado no fundo do poço o pote de barro cheio com cloreto das lavadeiras, o sabor da água deixou de ter a frescura habitual para passar a possuir o paladar próprio do desinfetante. Desde então, Amílcar insistia em explicar aos moradores que “o bom sabor é mau e que o mau sabor é bom” …
A seguir à lengalenga que apregoava com zelo, explicava os riscos do consumo da água sem ser previamente desinfetada.
(continua)
Francisco George
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