Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” 1 maio 2024
Nos últimos 50 anos ocorreram grandes transformações no nosso país. Portugal é, agora, diferente. Mais europeu. Essas mudanças são bem visíveis, bastando comparar os dados oficiais publicados pelo Instituto Nacional de Estatística de 1974 com os atuais. Neste sentido, realço: a população cresceu 1.5 milhões de habitantes; presentemente, cerca de 2.3 milhões de pessoas são pensionistas dos sistemas de Segurança Social; a taxa de mortalidade infantil desceu de 45 para 2.6 por cada 1000 nascimentos vivos.
Os exemplos multiplicar-se-iam em todos os setores da vida económica, social e cultural do país. Porém, escolhi esclarecer uma das transformações mais marcantes em saúde pública, mas, menos conhecida. Refiro-me à doença, antigamente comum e hoje rara, conhecida vulgarmente por “icterícia”, que é provocada pela infeção do vírus da hepatite A.
Atualmente, se uma família portuguesa viajar a África ou Ásia, só os jovens abaixo dos 35 anos precisam de ser vacinados contra a hepatite A. Os mais velhos, como são do tempo de Portugal sem higiene pública, lidaram de perto com o vírus e, por isso, geraram anticorpos. Isto é, os mais novos devem ser imunizados pela vacina, mas os mais velhos já estavam imunizados mesmo sem terem sido vacinados e, portanto, não necessitam de vacina!
Preciso.
A hepatite A pode ser adquirida por uma pessoa ao beber água contaminada por fezes (transmissão fecal-oral), visto que os vírus das pessoas infetadas são eliminados por via intestinal que, na ausência de esgotos, contaminam a água que a seguir será consumida. No início, tem como quadro clínico a falta de apetite, náuseas, a coloração amarela dos olhos e a pigmentação escura da urina. Esta situação, antes de 1974, estava relacionada com a circulação descontrolada dos vírus, porque as condições infraestruturais de saneamento básico eram muito débeis. Na altura, era quase constante o contacto das pessoas com o vírus porque a água estava frequentemente contaminada por fezes em consequência da ausência de infraestruturas de saneamento. Sublinho que, na época, apenas 25% da população era servida por bons sistemas de abastecimento de água potável ao domicílio e que só 17% dispunha de sistemas de esgotos e 14% de recolha organizada de lixo.
Além disso, parte da população vivia em barracas. Só em Lisboa, 90 mil pessoas residiam nas 18 500 barracas.
Assim sendo, é fácil admitir que os vírus eliminados por pessoas infetadas fossem depois, inadvertidamente, ingeridos através de ingestão de água não tratada (nem pelo cloro nem pela fervura).
Por isso, a população portuguesa convivia com os vírus e, como resultado, criava anticorpos protetores.
Acontece, porém, que essa proteção deixou de existir à medida que, no país, avançavam as grandes obras públicas de construção de infraestruturas de saneamento básico. Foi, então, que os vírus da hepatite A deixaram de ser ingeridos pela água, uma vez que passou a ter qualidade (potável).
Ora, como a entrada dos vírus no organismo cria anticorpos, verifica-se o seguinte fenómeno: quem tem mais de 35 anos possui anticorpos protetores naturais porque é do tempo do Portugal sem saneamento e, por outro lado, quem nasceu depois das grandes obras de abastecimento de água e esgotos já não tem essa proteção.
Conclusão: Só os mais velhos são do tempo do Portugal da conspurcação generalizada.
Francisco George
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